Vem pro novo século

Hoje eu vi (acho que revi, porque tem coisa que eu vejo e esqueço pra não sofrer) o vídeo de uma “empreendedora / influencer” (essas “profissões”, gente…) dizendo que não contrata mulher porque mulher (1) engravida, (2) tem TPM, (3) tem problema com filhos. A justificativa é que ela só quer funcionários completamente disponíveis, e por isso inclusive escolheu não ter filhos — ela quer ganhar dinheiro, viajar, beber, dormir até tarde. Então mulheres estão fora da empresa dela.

Tenho tantas coisas pra dizer sobre isso! A primeira é que acho ótimo que ela fale esse tipo de estupidez abertamente, já é um filtro pra mulheres e homens com pensamento mais moderno evitarem essa pessoa e a “empresa”.

A segunda é que essa pessoa tem +800 seguidores, e fãs suficientes pra fazerem perfis derivados do dela. Será que de repente ela é genial porém com opiniões cagadas sobre a vida? Fui conferir. Ela era gorda, ficou magra, é nutricionista e vende emagrecimento. Faz palestras desde que se formou e criou cursos on-line de emagrecimento. Ou seja — ela ganha dinheiro vendendo o sonho da beleza, que é realmente uma mina sem fim, reforçada pelo nosso entorno dizendo que somos gordos e preguiçosos sem força de vontade, e que só é gordo (e pobre) quem quer, quem não se esforça o suficiente.

E, claro, ela é uma perfeita personificação da loira-odonto, que batizamos aqui de Bettina: bem nascida, cabelo bem cuidado, eternamente de dieta, vida perfeita hétero com gatos e férias no exterior. Interior de SP representado com louvor.

Apesar de usar ferramentas modernas pra ganhar dinheiro e ser famosa (redes sociais, cursos on-line), ela representa muito bem tudo de mais atrasado no mundo dos negócios quando se trata de formação de equipes eficientes. Há inúmeros estudos de especialistas nesse assunto — há mais de 10 anos, gente. Já virou notícia velha! — indicando que os lucros são maiores quando temos equipes diversificadas. E isso não significa só gênero, raça ou orientação sexual, mas perspectivas únicas. Há vários estudos sobre como mulheres que são mães são funcionárias melhores (pais também, aliás, mas isso nunca é uma questão, certo?).

O que me espanta nessa gente é que vendem a imagem de modernos e pragmáticos, mas ignoram as evidências apresentadas pelos especialistas em negócios sobre composição de quadro de funcionários. Preferem continuar replicando seu machismo (“mulheres faltam muito”) e racismo (“não há negros qualificados no mercado”) do que observar o que as grandes e melhores empresas estão fazendo e fazer igual ou melhor. E as empresas grandes estão cada vez mais investindo em contratar mulheres, pessoas não brancas, pessoas não hétero!

“Ah mas para quem é pequeno empreendedor não dá pra bancar uma funcionária em licença maternidade!” — claro que dá. Deixa de ir pra Grécia todo ano, para de explorar todos os funcionários até o talo, contrate pessoas que consigam trabalhar ajudando uns aos outros, e dá sim. Se o lucro ABSURDO e RÁPIDO não fosse a única preocupação dessa gente, dava pra resolver tudo. As margens de lucro de empresas grandes são muito menores que de empresas pequenas, elas são feitas para durar, para serem sólidas, e não pra explorar os funcionários pra que o patrão tenha lancha e avião.

Já repararam quantos donos de pequenas empresas no Brasil aparentam ser mais ricos que CEOs de empresas grandes? O cara tem uma padaria e anda de Land Rover, num país miserável. Paga salário de fome pros funcionários, arrocha os fornecedores, pros filhos irem pra Disney todo ano. É toda uma lógica de exploração pra tirar o máximo de lucro o mais rápido possível, é predatório. Nenhuma preocupação com sustentabilidade, com a comunidade, com o futuro. “Farinha pouca, meu pirão primeiro”.

Acomodar no seu quadro de funcionários todos os tipos de pessoa é BOM pros resultados da empresa, pra começar; e pra terminar é uma forma de colaborar com o crescimento da sociedade (já que estamos num sistema capitalista, joguemos o jogo!). Pessoas com filhos, sem filhos, jovens, velhos, gays, negros, asiáticos, pessoas com deficiência, todos têm a contribuir e dar uma perspectiva única, refletindo a REALIDADE, tirando a empresa da bolha.

Quando for procurar emprego, ou indicar, aconselhar alguém sobre carreira, vamos lembrar das empresas que valorizam todo tipo de ser humano. Gente como essa “empresária” vai desaparecer no longo prazo, e pra quem segue e admira esse estilo eu só lamento a síndrome de Estocolmo e desejo que venham rápido se juntar a nós no século XXI.

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Evidência anedótica, porém legal: conheci uma moça que estava buscando mudar de emprego, participando de 2 processos seletivos, em posição de gerência média. Ela estava grávida e não sabia, e foi finalista de 2 processos em multinacionais. Ligou para a 1a empresa, e avisou que estava grávida, a recrutadora respondeu sem pensar — “que pena, você era nossa candidata preferida!”. Ela não foi contratada. A outra empresa respondeu — “queremos contratar você pelo seu talento, e sua gravidez é temporária. Você vai voltar depois da licença, não vemos problema.”

Ela foi contratada, grávida, saiu de licença 6 meses e voltou. Foi contratada pela Apple do Brasil.

Um outro mundo, mais inteligente, é possível.

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