(sem título)

closet

gaveta cheia, gaveta vazia, gaveta desarrumada… gavetas, gavetas. uma não tem puxador, a outra emperrou. empurra com o pé, com a perna, (“ai, farpa, droga!”), soca lá dentro o que couber, rápido, antes que seja tarde. enquanto olha o que tem ali, pergunta-se continuamente que mania é essa de organizar gavetas. calcinha velha… (gavetas das calcinhas-velhas-que-não-vai-usar-mas-não-quer-jogar-fora) camiseta “i love %$&*”… (gaveta das camisetas-horríveis-que-um-dia-serão-usadas-para-dormir-mas-nunca-o-são) meias desparceiradas; roupas que não cabem mais; cuecas de ex-namorado; calcinha de ex-amiga; naftalina (isso ainda existe?!)

(ring, ring)

— mãe?

— oi filha, que saudade!

— eu também, mãe…

— e aí, filha, tudo bom? tá frio?

— não, até que não. quer dizer, não sei, tou aqui no quarto trancada e… por isso te liguei…

(silêncio)

— mãe, por que eu não consigo jogar as coisas fora? por que eu guardo esse sutiã horrível que a vó me deu há 5 anos? ele nunca coube, mãe. e eu fico culpada de jogar porque ela gastou o dinheirinho dela nesse sutiã cor de framboesa que eu nunca usaria nem se coubesse, e ele não cabe. e essa camiseta que o tio me deu quando foi pra fortaleza? será que ele acha que eu gostei disso? mas eu não consigo usar de pano de chão, mãe. já levei a maldita camiseta três vezes até a área de serviço, coloquei na pilha de panos de chão… mas eu volto, toda vez, e pego de volta, como quem pega o filho que abandonou na porta da igreja. quase choro, acredita?

— filha…

— não, mãe, juro. juro! eu tenho um armário cheio de roupas e eu uso sempre as mesmas 10 ou 12 peças. acho ruim quando minha calça preta tá pra lavar, eu quero sempre usar a mesma. e há cabides e cabides de peças lindas e inúteis. há gavetas cheias de peças feias e velhas, há coisas que nunca usei e nunca usarei. mas eu não consigo, eu não consigo… (chora)

— calma, calma… eu sei. filha, você bebeu?

— NÃO, mãe, eu NÃO bebi! aliás, eu não bebo!

— eu, sei, por isso mesmo per…

— devia beber, sabe? devia encher a cara e colocar FOGO nisso aqui tudo, picar com tesoura, me livrar de tudo!!

— menina, pára já com isso!

— não paro! não paro! me diz: como é que você passou uma vida toda e não enlouqueceu com tanta coisa? com tanta meia, com tanta camiseta medíocre? como você rasgava nossas blusas velhas e fazia pano de chão? até hoje lembro daquela camiseta que eu ADORAVA e você usou de pano de chão! (soluçando)

— filha, pelo amor de deus, aquela camiseta tava rasgando, tava horrível e…

— HORRÍVEL NADA! EU ADORAVA ELA! (soluçando mais)

— filha, chama a neide no telefone por favor.

— neide é o caralho! a neide tá lá fora lavando e passando MAIS ROUPA e daqui a pouco ela sobe aqui pra me dar mais problema! mãe, me ajuda antes que eu faça uma bobagem… por favor!

— ai, santo deus… mas o que você quer que eu faça? eu simplesmente pego as tranqueiras e jogo fora! jogo, assim, “tchum”, pronto. não serve mais? tchau. serve mas tá ocupando espaço precioso? tchau! é simples…

— simples? simples?! isso, me chama de idiota. de burra. de incompetente. EU NÃO CONSIGO! será que você não vê?

(silêncio)

— filha?

— oi… (fungando)

— faz diferente, vamos tentar?

— vamos… (assoando)

— tira tudo do armário. eu espero aqui. TU-DO. coloca na cama.

— tudo? pra quê?

— tira, vai, tou mandando.

— (…) tá bom. espera aí.

— mãe?

— ahn!

— até os casacos, aqueles pesados?

— tudo. vai logo, o interurbano é caro…

(tira, tira, tira, tira. muitos minutos depois…)

— mãe, acabei! (arf arf)

— ótimo… muita coisa?

— muita, mãe, muita! tinha coisa que eu nem sabia que tinha, que horror…

— é, é assim mesmo… quantos anos você tem mesmo, hein?

— ai, mãe, cada pergunta… 29, você sabe!

— então, filha, pode escolher uma peça pra cada ano da sua vida. e é com essas peças que você vai ficar. todas as demais, você manda a neide enfiar num saco e levar embora.

— COMO ASSIM?

— não discute, e faz o que eu tou dizendo. escolhe uma peça pra cada ano. escolhe bem, filha. pensa em cada ano da sua vida, do que você se lembra, do que eu te contei quando você era pequena demais pra lembrar. e escolhe, um presente para cada ano. é com isso que você vai viver daqui pra diante: das lembranças da sua vida, dos presentes que você souber se dar.

— mas…

— mas nada. boa sorte, filha. se precisar de mim, sabe que estou sempre aqui.

(clic)

ela olhou o telefone, tu-tu-tu. olhou a montanha ao redor, respeitosamente. sentou-se com calma, espalhou o que estava ali, próximo, e começou a trilhar suas memórias, seus sonhos e conquistas. lembrou do cheiro do leite de quando assistia os desenhos à tarde, lembrou-se do primeiro dia de faculdade, lembrou-se do natal da bicicleta. pegou distraidamente uma echarpe que nunca usara, comprada numa viagem esquecida. lembrou-se da viagem, dos cheiros e cores, da companhia (sentiu saudade). colocou a echarpe de lado, pois que a vida e a lembrança eram mais macios que a seda pintada.

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