Não seja uma porta (fechada)

Acho muito importante e educativo chamar a atenção para todas as formas de opressão e “lavagem cerebral” realizadas no decorrer da história da literatura, cinema, propaganda, TV, etc.

Como exemplo, cito Monteiro Lobato: racista declarado, eugenista, incluiu em sua obra todo seu preconceito. Nós que crescemos lendo Monteiro Lobato absorvemos a mensagem, mesmo que hoje lutemos contra tudo que nos “ensinou”. Não sou a favor de eliminar seus livros, mas antes usá-los para expor o horror que era essa época e colocar pingos nos ii. Essa reeducação é complexa, no entanto, porque pressupõe entendimento do problema e cuidado ao passar a mensagem. Por isso questiono se devemos manter obras assim em currículo escolar — os professores estão preparados para desconstruir a mensagem? Como se sentirão as crianças negras ao serem expostas ao material? É preciso muita atenção ao lidar com a questão, então entendo que o ideal é que os pais sejam responsáveis por apresentar e desconstruir obras.

Tivemos que fazer isso inúmeras vezes aqui, com livros e filmes, quadrinhos, desenhos. Desde a forma como protagonistas homens tratam mulheres até como pais tratam seus filhos, tivemos que explicar que era outra época, com senso de valores diferentes, e que evoluímos. O que era aceito há 40 anos não é mais aceito hoje — ainda bem. Mas falar sobre isso é a parte importante, não queremos que nosso filho pense que “as coisas são assim”, mas que entenda que as coisas mudam porque nós lutamos pra que elas mudem. Nada vem de mão beijada, especialmente nossos direitos.

Hoje soube da celeuma sobre Judy Garland fazendo black face (pintando-se de preto como uma caricatura de pessoa preta, algo que era comum antigamente e hoje felizmente não é mais aceitável), e muitas pessoas defendendo a atriz, que era criança na época. Mesmo que ela não quisesse fazer a personagem (e não vejo porque não quereria; ninguém além dos próprios pretos se importava com isso na época), não teria escolha.

Meu pitaco aqui é que (1) é importante falar sobre o assunto, sim e (2) não se trata de cancelar / demonizar quem cometeu as faltas no passado. Falar sobre isso lança mais luz sobre a questão e nos ajuda a avançar, continuemos falando! Demonizar quem cometeu a falta, especialmente no passado, é inútil e desvia o foco. Era outra época, éramos mais ignorantes, ponto final. O que importa é agora: quem ainda está defendendo esse tipo de comportamento nessa altura do campeonato está equivocado e precisa rever seus valores.

Dia desses falava com amigos sobre esse excelente vídeo mostrando como os personagens de Harrison Ford no decorrer de vários filmes na década de 80 construíram uma imagem perniciosa do que é romance entre homens e mulheres: eles sempre insistentes e sem limites, e as mulheres repetindo aquele fantasioso clichê de “mulheres quando dizem não querem no fundo dizer sim”. Isso é o supra sumo da cultura do estupro — insista, invada, no fundo elas querem, estão “fazendo jogo”. “Quem cala consente”. Dizer “não” não é suficiente, elas precisam gritar e espernear, talvez? Provavelmente nem assim.

A culpa dessa mensagem ser disseminada em grande escala é de Ford? Do diretor? Sim. Eles sabiam o que estavam fazendo, de caso pensado? Não. E não adianta condená-los, porque à época não se tinha a consciência que temos hoje. E adianta falar sobre isso e fazer a crítica, admitindo que isso foi um desserviço à sociedade? SIM, mil vezes sim.

Quando fazemos a crítica de erros do passado, aprendemos a não repeti-los. Não quero meu filho assistindo Indiana Jones e achando que o comportamento do herói com mulheres é aceitável, porque não é. Podemos e devemos fazer críticas e usar os exemplos pra não errar mais. O que está feito está feito, mas não vou criar desculpas pra defender o que é indefensável. Não há benefício algum em “cancelar” Judy ou Harrison, mas também não há benefício em defendê-los. Como celebridades, eles são reflexo da sua época, e a crítica deve ser à época, já que eles deram voz a personagens.

Separar o artista da obra é muito importante, entender o contexto e época é muito importante, mas mais importante que tudo isso é manter a discussão acontecendo. Os tempos mudam, e temos obrigação de nos adaptarmos. A obrigação é mais pesada quanto mais no topo estamos da “cadeia alimentar”, na ordem: homens brancos, mulheres brancas, homens negros, mulheres negras.

Cada vez que você, homem branco, estiver numa discussão sobre gênero, ouça as mulheres ao invés de falar. Tente aprender e apoiar. Cada vez que nós, pessoas brancas, estivermos numa discussão sobre raça, devemos escutar mais que falar, pra aprender.

Isso significa que não podemos falar, estamos sendo “silenciados”?  NÃO. Quem está no topo da hierarquia SEMPRE pode falar mais, e sempre é mais ouvido. Essa é a norma. Ouvir é a única forma de aprendermos, já que normalmente estamos falando.

Quem quer continuar burro, ignorante, falando sozinho? Eu que não. Continuarei fazendo meu melhor pra aprender e ensinar os meus a serem melhores.

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