o mundo não somos (só) nozes!

escrevi um pouco hoje no fabricando sobre alimentação de bebês e educação do paladar, e resolvi estender o assunto aqui.

a questão do desenvolvimento e refinamento do paladar e do quanto embotamos nossa percepção com alteradores de sabor é antiga pra mim. como expliquei lá no post que linquei, meu processo de descoberta começou aos 16 anos, e não parou mais. fiz uma desintoxicação de sal-açúcar-temperos e depois fui experimentando o que mais me agradava (e aprendi no processo a saborear os alimentos in natura).

vejam bem: não sou contra temperos, nem sal e nem açúcar. adoro todos os temperos, quase sem exceção, a questão é os temperos não devem ser a essência do prato, mas coadjuvantes. e isso não quer dizer que sejam menos importantes, mas que estão ali para realçar o principal, e não o inverso. é mais ou menos como uma sinfonia que tem lá seu instrumento principal, com todos os demais acompanhando. ora, fica desagradável se a peça é para violino solo e a trompa começa a gritar lá do fundão, perde-se a harmonia da peça!

também é assim na culinária — é preciso sabedoria e talento para usar temperos e acompanhamentos, tal que o ingrediente principal fique em evidência e seja exaltado pelo que é secundário. por isso que às vezes “enjoamos do tempero”, porque alguns cozinheiros só sabem temperar sempre do mesmo jeito, independente da característica do ingrediente. no brasil por exemplo é comum o uso excessivo de cebola e alho em absolutamente tudo. o que acontece é que não importa qual é o ingrediente principal, todos os pratos têm o mesmo gosto (cebola e alho refogados). em lugares específicos do brasil temos o mesmo problema com o coentro, cominho ou pimenta.

(aliás, esse é um motivo de desgosto meu com restaurantes vegetarianos — muitos deles não sabem explorar o sabor dos alimentos, e tudo fica com gosto de refogado de alho e cebola! eca!)

enfim, graças a essa minha percepção de que temperos são e devem ser secundários (sal e açúcar inclusos), procuro ser comedida no uso. e como é natural, quero que meu filho aprenda a apreciar os sabores dos alimentos e não só do tempero. uso tempero com MUITA moderação, e nunca uso sal e açúcar em casa na comida dele. ele come sal, açúcar  e temperos normalmente na rua, ou quando acaba comendo junto com a gente. não é proibido, afinal não é errado, mas evitamos, por crer que é importante que ele desenvolva seu paladar nesta fase sem muitos “aditivos” e aprenda a gostar dos alimentos como eles são.

mas graças a essa nossa convicção temos enfrentado dificuldades com a maioria das pessoas do nosso convívio (família, amigos, funcionários domésticos…) que não se conformam que não damos tempero pro menino, coitadinho! “pobrezinho, que comida RUIM e SEM GRAÇA!”.

é preciso muita paciência e respeito pela diferença (respeito que falta a todos que fazem este tipo de comentários, diga-se) para explicar nosso racional sem mandar às favas. e tentar fazer com as pessoas entendam o óbvio: paladar é individual, e é construído. nem tudo que você acha sem graça ou ruim também o é para o outro (ou é sem graça por definição).

tentamos, por caridade, adotar o método socrático às vezes: por que a comida dele é “sem graça” ou “ruim”? ou simplesmente explicamos que “é ruim porque você se acostumou a comer com tempero; pra ele, essa comida é boa e gostosa, ele aprendeu a gostar dos alimentos puros”.

e o que fica evidente nestes pequenos embates de ideias é o quanto as pessoas em geral não percebem que elas próprias, seus gostos e suas crenças não são a representação do ser universal. que não é legítimo e nem razoável julgar os demais por si mesmo, que cada indivíduo tem seu caminho, sua história, suas preferências. e que é perfeitamente possível fazer as coisas de uma forma diferente, ter gostos diversos, viver de outra forma.

minha mãe, por exemplo, que não gosta de quiabo com baba, cismou que o otto não queria comer num determinado dia porque “ele não gostou do quiabo” (projetando o desgosto dela para o menino). pois separei só quiabo pro menino comer, e ele comeu tudo. o que ele não queria — naquele dia! — era outra coisa que estava no prato. mas é incrível como as pessoas projetam suas experiências, seus gostos e desgostos nos outros, como se o mundo fosse pautado por elas mesmas.

um dos grandes aprendizados que tive e continuo tendo na vida é do quanto o mundo é diverso, e como as pessoas podem ser diferentes. e — mais importante ainda — como eu posso ser diferente, me reinventar e aprender a ver/fazer as coisas de outra forma.

talvez a melhor parte de ser pai/mãe é justamente a oportunidade de ver o mundo por outro ângulo, com olhinhos novos e cheios de curiosidade. aprender, através do aprendizado do outro, através do ensinamento. e nunca, jamais esquecer que sempre é possível mudar, tentar de outro jeito, renovar-se.

12 comments to “o mundo não somos (só) nozes!”
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  1. Pingback: a fisiologia do gosto (*) | Fabricando

  2. É por isso (entre otras cositas) que eu te amo. Você é tão gentil e didática…

    Eu sempre penso (mas não falo) em falar para essa gente que “está ruim e sem graça porque você estragou a porra do seu paladar e não sente mais gosto de nada que não seja absurdamente doce ou salgado!”

    Aliás, você salvou meu paladar, já há uns bons anos. Obrigado. 🙂

  3. Também passei por isso. Passo até hoje. Acham que eu sou a bruxa má porque não loto a comida dos meus filhos de sal, manteiga e acucar. Um amigo médico já me disse que há 3 pozinhos brancos que estão acabando com a humanidade: sal, acúcar e farinha…. (juro que pensei em outros pós…. hehehe).
    E tbem vi bizarrices: gente oferecendo comida para os filhos nos seguintes termos “vc vai querer essa coisa verde????”, ou “vc não vai querer esse creme de CÔCO, né???”. Ou seja, eu não gosto, vc não tem o direito de gostar… Triste.

    • Isso eu acho o pior: dizer pra criança que ela não vai gostar de alguma coisa porque você não gosta, ou aderiram ao preconceito que crianças só gostam de DOCE, BIFE E BATATA FRITA. Além de ridículo, demonstra ignorância, né?

  4. Puxa, Zel, você sempre me faz pensar, repensar, pensar de novo… rs.

    Esse post foi ao mesmo tempo um alento e um alerta. Aqui em casa, não demos nada de açúcar pro Uli até ele completar um ano, justamente pensando nessa ampliação de paladar. Da mesma forma, eu não temperava as papinhas, sopinhas ou comidinhas com quase nada, ou com nada. Ouvi um monte, especialmente da família do Beto, que foi criada com cozinheiras e temperos mais do que marcantes. Minha cunhada (que eu amo, diga-se) chegou a dizer essa frase textualmente (‘coitadinho, claro que ele não vai querer comer essa comida sem gosto que vc fez pra ele’) e virou até piada na família.

    Enfim, acho que valeu o esforço, ele tem um paladar amplo, gosta de muita coisa, das mais suaves às mais fortes. Agora, com quase 4, ele está começando com as frescurites (inventou que não gosta de salada – não demos trela e ele está voltando a comer, aos poucos), e aí temos um desafio que é manter o “bom garfismo” dele. Vira e mexe fazemos um jogo, cada variedade de alimento diferente que ele (e nós) experimenta ou come vale um ponto, aí brincando vamos estimulando os paladares diferentes. Eu passei 15 anos sem comer carne vermelha, mas nunca me passou pela cabeça que tinha que repassar meus gostos ou escolhas pra ele. Hoje ele já entende: você adora presunto, mamãe não gosta. Mamãe adora abacate, que você não gosta tanto, e assim por diante, sem que isso o desestimule a comer.

    Quanto ao açúcar, embora eu nunca tenha gostado de nenhuma bebida adoçada (em algumas épocas nem limão), sou uma formiga pra doces, e infelizmente vi isso influenciá-lo. A gente não proibe, mas regula bem, e o desafio agora é tirar a fissura que ele tem, pra não virar um hábito (como virou pra mim).

    Enfim, que bom poder pensar (e falar, que eu sou tagarelésima) sobre o assunto. Que bom poder ouvir e falar com respeito!

    Beijos e não vejo a hora de conhecer esse lindinho!

    Teca

    • oi querida 🙂 essa experiência de querer fazer uma alimentação melhor, seja pra gente ou pros bebês, é às vezes reveladora. do quanto as pessoas se alimental mal, em primeiro lugar, e em segundo lugar do quanto não respeitam as opções e experiências alheias.

      em relação ao que se oferece à criança, eu procuro seguir o seguinte princípio: ele deve comer DE TUDO que seja natural (em oposição a industrializado). acho muito arriscado por exemplo impor restrições alimentares a bebês/crianças (obrigara a criança a ser vegetariana, por exemplo, porque os pais o são).

      no fundo, acho assim: quero que meu filho conheça as opções, como animal onívoro que é, e possa no futuro escolher como deseja se alimentar. não acho correto (como filosofia e nem como procedimento de cuidado com a saúde do bebê) eliminar elementos básicos da dieta (carboidratos, proteínas, vitaminas, fibras, etc.)

      quero rever seu menino também, que conheci ainda no peito! 🙂

      beijo, linda. obrigada pelos comentários sempre muito ricos.

  5. Infelizmente meu paladar é muito deseducado desde a infância, comida para mim – para mim, não para os outros, sem alho e cebola fica totalmente sem graça! Já estou conseguindo diminuir o sal e abomino o glutamato monossódico, aí sim , esse é problema de saúde pública.
    O pior, e nisso você mais uma vez você foi perfeita na abordagem, é quando falta delicadeza, é quando entra a patrulha e as pessoas não respeitam a sua opção ou desejo. É quando o povo que come sem tempero e muita verdura (que não é meu caso) te olha como se você fosse culpada pela fome do mundo. Convivo com isso diariamente, minha chefe chega às raias de vigiar o que estou comendo e dar palpite. Como se comer um pratão de salada sem tempero por si só fizesse as pessoas melhores!
    Beijão, querida

    • Marilda, julgar as pessoas pelo que elas comem chega a ser engraçado 🙂 É um dos meus problemas com pessoas que têm restrição alimentar, e transformam isso num rótulo. O mais importante é que as pessoas respeitem as opções umas das outras. Quer consumir montes de sal, açúcar, temperos e etc.? Vá em frente, mas não critique o GOSTO das outras pessoas, poxa. Gosto é pessoal por definição, não é? Beijo!

  6. Adorei esse post. Lá em casa é igual, vivo tendo que dizer às pessoas para não projetarem os seus “desgostos” no bebê. Mamãe tb me veio com “Quiabo?? Coitadinho!!”. E ainda assim, ele come o quiabo que é uma beleza. Sal e açúcar são costume e acho que nessa fase é tão importante eles provarem os sabores das comidas de um jeito mais simples, para saberem qual o gosto real das coisinhas. Ao mesmo tempo, tenho medo de ser radical em relação a isso, mas já percebi que as poucas vezes que o menino comeu açúcar, virou objeto de desejo. 😛 Bem, como em tudo mais, o segredo é achar o equilíbrio.

  7. Pingback: criando um gourmet |

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